Pesquisar Neste Blog

Total de visualizações de página

DESTAQUE

DESTAQUE
Eros Volúsia (Heros Volúsia Machado- 1914/ 2004) foi uma dançarina brasileira nascida no Rio de Janeiro, aluna de Maria Olenewa na Escola de Bailados do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, hoje Escola Estadual Maria Olenewa. Estreou no Teatro Municipal e pouco depois podia ser considerada a inventora da dança brasileira. As danças místicas dos terreiros, os rituais indígenas, o samba, o frevo, o maxixe, o maracatu e o caboclinho de Pernambuco foram algumas das fontes de pesquisa artística da bailarina. Em uma de suas inúmeras entrevistas dadas à Revista O Cruzeiro, Eros Volúsia sintetizou sua missão artística: "Dei ao Brasil o que o Brasil não tinha, a sua dança clássica!"

PUBLICAÇÕES

...

EIS O MARGINAL: COMO ALGUÉM SE TORNA O QUE É

Mariana Maia, Cabide Nº1
Cabide, Tecido, Alfinetes.
Objeto 2011

            Trapo retorcido no cabide. Sou destino. Dobras, rugas, deformações alfinetadas delicadamente. Tecido amorfo grampeado no chassi-cabide. Contorcido, entre agulhas, parece sentir dor. Ironia trágica. A existência não seria possível sem a sustentação dos objetos perfurantes.
Moldamos um tecido fino com golpes de tesoura e pontas de agulha. Quem foram meus pais e minhas mães? Onde está minha herança? Diáspora. Tudo é corpo.  Negra, lábios grossos, nariz chato, cabelo duro, bunda grande, cabeça chata, barriga d’água, amarela. Horácio “respira cansado mais um pouco neste mundo tão duro, para todos contares minha história[1]. Tudo é sangue.
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito. Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio.” [2].
Lodo negro. Marginal do Faria-Timbó. Via da janela do pau a pique: lixo, excrementos, chiqueiro, bosta de galinha, outras taipas, outros rostos de barro como o meu. Cuspida e escarrada de José e Maria. Filha de Ogum. Ele que era duro, o pai, tinha nas veias água ardente. Retirante em marcha das estradas empoeiradas da Paraíba para as obras da Vieira Souto.
Sétima. Marginal de três irmãos e três irmãs escapei de virar lobisomem por ser mulher. Preterida pela mãe diante de tantas crias. Ninguém fez conta dos centímetros que ganhava ao longo dos anos. Alcancei a velha estante cheia de cupins. Aprendi com as traças a devorar imagens ignotas. Minha mãezinha não me ensinou a ser fêmea. Esquecida de mim deixou que virasse um bicho que come papel. Assim começou o ocaso daquela que vem de Maria.
Letrada. Não vesti a máscara da preta, pequena e favelada. Aprendi no sanatório de Thomas Mann e no sorriso insano e dourado do traficante o que é a doença e a morte. Desde então tenho buscado curas. Quelóides na pele açoitada. Encruzilhadas onde encontre outro “eu”. Aquela que não morreu com bala perdida, fome, descaso. Aquela que não deu o primeiro tapinha ou cavalgou o cavalo branco. Aquela que não foi seduzida pelo maço de notas altas. Aquela que encontrou a si mesma no centro do jardim de becos que se bifurcam.  
Equilibrista. Nas margens de um abismo. Olhei para a corda estendida, abaixo a crueldade e a violência. Não esmoreci. “É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar”[3]. Não sou vítima. Não sou uma rosa frágil. Sou da estirpe dos guerreiros que empunham o facão e a enxada; das lavadeiras, peniqueiras e trabalhadoras de fábricas. “Um instante de vôo selvagem”[4]. Como Dédalo forjei a minha saída do labirinto na ponta de uma pena.
Artista, marginal, redescobri a performance do feirante, as cores dos muros suburbanos, o parangolé do mendigo, a arquitetura do morro, a paisagem das casas abandonadas. Tudo flui. Entro novamente no rio caudaloso. A mesma água, mas eu sou outra. O tempo é temporal. A chuva ininterrupta não me permite respirar. Não posso ser a pintora divina ou a desenhista etérea. Nas esferas superiores é tudo sério, metódico, profundo, solene. Não sabem dançar. O deus que dança vem da lama podre. O cão de três cabeças ladra furioso. A trama delicada agora são trapos. Nesse circulo tudo é tão difícil, mas há riso.  Na ponta de uma agulha. Sou destino. “Nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro — o rio.”[5]

 Mariana Maia
Mestra em Artes Visuais – UERJ.
Artista Visual, Professora de Artes . Webdesigner
21.8842.2063 . 21.3555.7957 .

Referências Bibliográficas
ALIGHIERI, Dante. “Inferno” In A divina comédia. São Paulo: Ed. 34, 1998.
BORGES, Jorge Luis. “O Jardim de veredas que se bifurcam” In Ficções. São Paulo Companhia das Letras, 2007. pp. 80-93.
JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
____________ Ecce Homo: como cheguei a ser o que sou. São Paulo: Martin Claret, 2005.
____________O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007.
ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. In Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.

Notas


[1] Shakespeare, William. Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997. p.135.
[2] Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 56.
[3] Idem. p. 31.
[4] Joyce, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
[5] Rosa, Guimarães. “A terceira margem do rio” In Primeiras Estórias  . Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988. p. 32.