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Eros Volúsia (Heros Volúsia Machado- 1914/ 2004) foi uma dançarina brasileira nascida no Rio de Janeiro, aluna de Maria Olenewa na Escola de Bailados do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, hoje Escola Estadual Maria Olenewa. Estreou no Teatro Municipal e pouco depois podia ser considerada a inventora da dança brasileira. As danças místicas dos terreiros, os rituais indígenas, o samba, o frevo, o maxixe, o maracatu e o caboclinho de Pernambuco foram algumas das fontes de pesquisa artística da bailarina. Em uma de suas inúmeras entrevistas dadas à Revista O Cruzeiro, Eros Volúsia sintetizou sua missão artística: "Dei ao Brasil o que o Brasil não tinha, a sua dança clássica!"

PUBLICAÇÕES

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CHICA, CALENDA E BAMBOULA...

Revista Quilombo!
Historia | Danças Afroargentinas de 1810
Dança Bamboula
Já escutou esses nomes?
Por Fabio Sambartolomeo¹

A intervenção dos afros descendentes nos atos históricos de 25 de Maio de 1810 ficou, habitualmente, relegada à figura da vendedora mazamorra, uma comida a base de milho, e a do vendedor de pasteis.  Embora sua participação tenha sido muito maior marcando, entre outras coisas, ritmos e danças que posteriormente se tornaram símbolo nacional. Em quanto ás damas e cavalheiros criollos² dançavam minueto, outras danças também faziam parte daquela época.
A celebração de 25 de maio nos apresenta a possibilidade de refletir sobre nossa própria identidade como povo. Quais eram realmente as músicas e danças que ressonavam nas ruas de Buenos Aires no ano 1810? Em 1806, segundo dados presentes no Arquivo Geral de la Nación aproximadamente 30 mil africanos foram trazidos de forma forçada da  África subsaariana (a maioria das pessoas eram de procedência banto), para serem escravizados na zona. Somaram-se aos que já haviam ingressado em décadas anteriores, pois, como é sabida, nesse ano a porcentagem de afro portenho chegava a 30%.
Investigações de todos os anos nos mostram à enorme presença africana na cultura nacional. Muitas delas permitiram realizar uma reconstrução etnográfica das danças e músicas mais presentes dessa época. Os afrodescendentes participaram na criação de muitos dos gêneros que hoje conhecemos e reconhecemos como próprios. Desde o tango á chacarera, desde o candombe³ á cumbia, a semente da África desenvolveu-se em nossa cultura nacional. Devemos, então, colocar a participação dos afros de 1810 à figura do vendedor de mazamorra ou ao do vendedor de pastéis? É possível começar a divulgar e evidenciar sua participação na conformação de muitos dos ritmos e danças que são símbolo de nossa Nação?
A calenda é uma dança de corte claramente africana que tem sido descrita por numerosos viajantes da época. O beneditino francês Dom Pernetty realizou no ano 1763 uma evidente mal intencionada descrição desta dança no seu livro Historie d’un Voyage, em que a classifica de “lasciva e indecente”, embora, suas apreciações nos permitam ter uma idéia de como poderia ter sido a coreografia. Jean Baptiste Lavat e Jullien Mellet - para citar outros casos - também coincidem nas suas descrições da mencionada dança, e nestas apreciações, os viajantes evidenciam as características que estão sempre presentes nas danças de origem africana.
Atualmente o trabalho ‘Técnica de Raíz Afro para o Movimento’ da professora de dança afro Laura Rabinovich, classifica a presença dos africanos, quando define o eixo inclinado, as pernas flexionadas e o balanço do dorso como “parâmetros e posturas corporais próprias (da dança afro) que a diferenciam de outros tipos de dança”. A tão falada umbigada ou semba (origem também do reggaeton perreo) é, justamente, o movimento de cadeiras que tanto escandalizava aos eclesiásticos da época. Esta umbigada se encontra presente, e igualmente que nas demais características enumeradas, dentre outros gêneros afro americanos, como no ‘vacunao’ das danças afro cubana.
A calenda é uma dança que apresenta todos essas marcas que a definem, e se dança em duas filas de bailarinos, homens de um lado e mulheres do outro. É possível fazer uma reconstrução etnográfica desta dança, tendo em conta seus elementos constitutivos, igual que à música. Por exemplo, há arquivos de áudio de calendas da Guiné, levantados por Roger Vetter na década de 70, que contribuíram, junto com o resto dos arquivos, artigos, pesquisas e conceitos de etnomusicólogos, para resgatar esta dança.
A bamboula é outra das danças que se dançavam no começo do século XIX. Esta dança, além de apresentar as características antes expostas, próprias de qualquer dança afro, se dança em círculo. Poderia se, incluso, acrescentar no traço das famosas danças circulares que remetem a distintas culturas originarias do mundo. Esta dança alcançou ampla difusão na zona do Rio de la Plata. Na sua coreografia, as mulheres se lançam para o centro para demonstrar suas habilidades dancísticas, como também se observa nas danças malinkes e wolof. De algum modo, a bamboula remete ás danças de cortejo tão habituais na África subsaariana de onde, no momento da iniciação, se montam estas coreografias para formar os casais matrimoniais. Una vez mais, o conceito de funcionalidade nos mostra como as danças e as músicas não são só um elemento de diversão, mas também, fazem parte de uma complexa estrutura sociocultural.
A bamboula, igual que a calenda, foi se transformando com o tempo e hoje podemos encontrar sua presença no candombe e nas danças de carnaval. Entre os numerosos viajantes que descreveram os movimentos da bamboula podemos citar a Pierre Loti. Assim como é possível traçar uma estrada musicológica que vai dos Yorubas até a Bossa nova no Brasil, ou dos Griots ao Hip Hop nos Estados Unidos, do mesmo modo, poderíamos traçar uma estrada que parte desde os povos Bantos até o atual Candombe, passando pelas danças que aqui tratamos.
Também encontramos numerosos registros que evidenciam a grande popularidade da chamada dança Chica ou Chika nas ruas de 1810. Neste caso, pareceria que no há uma coreografia tão marcada como nas anteriores, mas sem dúvida, o que mais ressalta das descrições e comentários que esta dança teve em seu histórico é a citada umbigada. Uma vez mais, este incessante movimento de cadeiras nos oferece a oportunidade de refletir sobre as danças americanas. Perreo, semba, umbigada, shincar, vacunao… distintos ramos americanos da grande árvore afro.
As três danças mencionadas, obviamente, se desenvolveram ao amparo dos tambores. Como sabemos o tambor não é só um instrumento musical, mas sim um transmissor da cultura oral. Neste sentido, a polirritmia de métrica cruzada se entende como um discurso fundamental na transmissão de esta cultura. No caso do Rio de la Plata, imediatamente, uniram-se as cordas, os pauzinhos ou claves xilofônicas, instrumentos de sementes, metais (geralmente cencerros de gado, ferraduras e elementos de trabalho cotidiano que nunca deixarão de ter uma função musical para a comunidade afro argentina) e outros objetos que, no enquadramento da tradição africana, adquirem traço musical ou, melhor dizendo, nunca deixaram de telo. De modo que poderíamos nos perguntar por que vemos com assombro as performances modernas que nos apresentam excelentes agrupamentos de percussão com os chamados instrumentos não convencionais (garrafões, tonéis de lubrificantes, etc.) incluso a percussão corporal, também presente desde a colônia na nossa pátria.
Demonstrando a naturalidade com a que esta cultura está presente nas nossas vidas, as crianças do Jardim n° 910 do distrito de Estevão Echeverría, no passado 26 de maio, dançaram inspirados na calenda, a chica e a bamboula. Para isso executaram, eles mesmos, tambores preparados com tachos de cartão, palitos, guizos e xênicos, e cantaram alguns cantos de origem bantos que foram resgatados do esquecimento. Crianças de 3 a 5 anos, sem a menor reparação na hora de tocar, dançar e cantar músicas que não existem no mundo da mídia massiva de comunicação. As últimas reformas curriculares incluem, em boa hora, conteúdos de cantos coletivos e percussão no currículo das formações docentes. Assim vamos.

Nota
¹ Texto de gentilmente cedido pela Revista Quilombo, uma revista digital da Argentina que trata de Arte e Cultura Afro;  fabimusica@gmail.com
² Criollos nome que se dava aos nascidos na Argentina naquela época     
³ Candombe música e dança popular negra que é cultivada até hoje. No Uruguai é música base do carnaval.