Por
Wilton Montenegro
Fotógrafo e artista
Fotógrafo e artista
Wilton Montenegro |
A cena é obscura, quase sem cor: pouca luz atravessa a névoa. Uma mulher com enorme saia rodada que esconde os pés, cabeça discretamente curvada e corpo levemente avançado sugerindo caminhada entra, como se deslizasse ou flutuasse, parecendo não tocar o chão: Cláudia Ramalho - que me trouxe à lembrança uma cena similar do filme “Playtime”, de Jacques Tati. Ainda estava com a mesma cara fascinada do ator/diretor quando, em seguida, no sentido inverso, outra saia rodada. E outra! *.
Cena das Aspas |
Entre eles, tudo
acaba em transe. Aqui tudo acaba em samba!
Sem pretender fazer uma
abordagem crítica nem uma resenha do que ocorre em cena, deixo apenas uma ou
outra observação do que vi, para fazer uma reverência. Principio por notar que
todas elas ao girar, fazem um quase imperceptível movimento de cabeça – ora
quase parado, ora muito rápido – não correspondente ao giro do corpo, como se
houvesse um delay – enquanto o corpo
se vai a cabeça aparentemente continua a nos olhar e subitamente ela reencontra-o
para girarem mais uma e uma e outra vez –, oposição ao êxtase, o autocontrole
pondo ordem no caos mas deixando entrever levemente a tensão do desejo aparente
na pele sob a veste.
Agora a névoa se
dissipa e a luz traz a cor nas quatro mulheres; além delas, três homens de
diferentes idades e estilos de dança, entram numa cena quase nua, composta por
poucos instrumentos musicais e quatro ou cinco bandeiras. A rigor, o que se vê
são sete bailarinos, sete formas diferentes de apresentar a dança do samba, do
tradicional ao contemporâneo, com delicada harmonia. O espetáculo envolve pelo
que apresenta da ideia de arquitetura, arcabouço de construção, de um evento na
escola de samba: uma escola de mestre sala e porta bandeira. A apresentação, através
de conflitos e desafios, tem seu ponto máximo, no meu entender, naquilo que é
menos visível na dança: em todas as cenas que o mais velho deles participa com
alguma das bailarinas, ele entrega a porta bandeira para outro mestre sala, conduzindo-a
com tal gentileza que parece que as mãos nem se tocam, e são exatamente essas
mãos quase invisíveis que possibilitam a leveza e a importância da bailarina.
Ela é a porta bandeira, ela carrega e defende o pavilhão que representa a escola,
e ele deve ser quem a apresenta ao público.
Ela deve brilhar, ele deve
cortejá-la, saudá-la e protegê-la. A beleza desse momento tem um paralelo em
música: alguém disse que o saxofonista Lester Young, o Prez (de President),
tocava em
volta da cantora Billie Holiday, a quem chamava de Lady Day, como se
ele fosse um mestre sala e ela fosse a porta bandeira. Acredito nisso.
"...as mãos do velho mestre-sala conduziram todas as bailarinas..." (Wilton Montenegro) |
Em todos os momentos,
os braços e as mãos do velho mestre sala conduziram todas as bailarinas para
apresentá-las ao público, uma a uma, sorrindo sempre para elas, nunca para a
platéia, como se a alertar que a beleza estava nelas e na importância do que
carregavam, não nele. E, todavia, fazia isto sem descuidar dos pés: era ali que
estava a base do corpo e do samba.
Há alguns anos atrás,
vi Paulinho da Viola dançar em cena o miudinho. Porém, ah, porém eu estava no
teatro em uma posição desprivilegiada e não pude ver seus pés. Qual não foi
minha surpresa, ao ver no espetáculo de agora, afinal, o que era o miudinho: devagar,
devagarinho, a rara elegância e leveza dos passos curtos da dança. Aqui
reverencio aquele mestre sala que parecia flutuar sem sair do chão: Mestre
Dionísio.
Mestre Dionísio dança a beleza de seu Miudinho |
Ao
final da noite, gentilmente estendeu seu cartão de visita. Lá dizia:
Escola de
Mestre-Sala, Porta-Bandeira e Porta-Estandarte Manoel Dionísio - RJ.
1ª Vara da Infância e da Juventude.
1ª Vara da Infância e da Juventude.
Entidade Filantrópica, Beneficente Sem Fins Lucrativos.
Um homem preocupado
com a formação – de uma dança; com o futuro – dos jovens. E vice-versa. Um
homem a quem todos chamam de mestre, ele próprio uma entidade, e que escreve no
seu cartão apenas o que lhe é próprio: Manoel Dionísio. Poderia chamar-se
Samba.
Rio de Janeiro, março de 2013.
* O elenco era composto pelas bailarinas Claudia Ramalho, Leticia Ramos e Lidia Larangeira,
pelos bailarinos mestre-sala Hugo César e sapateador Leonardo Sandoval, por
Mestre Dionísio e pela bailarina e coreógrafa Andrea Jabor.